quinta-feira, 2 de julho de 2015



Até breve

 

A moça nada tinha a dizer sobre minhas viagens. Seus olhos não desgrudavam do celular. Ao ouvir pedaços da minha conversa, ficava o tempo todo a dizer "né", " então" e "nossa!".

Encontrei uma desculpa para tamanha indiferença. Minha cara de índio e quarenta anos nas costas, impedem um diálogo solto e leve com essa geração.

O bus se aproxima. Em silêncio, disse para mim mesmo: até breve.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

 O homem da Casa Verde


Numa casa verde,  um homem conta  a fábula "A flor lilás".
As crianças estão sempre atentas,mas interrompem entre um paragrafo e outro, com perguntas difíceis. Curiosas, tudo desejam saber sobre a natureza.  Quando falta palavras para completar as respostas, o homem faz uma pausa. Diz que a natureza  é sábia. Doa tudo aos homens e cobra de volta, quando não é respeitada.
 
Em seguida, comenta sobre chuva fina que molha o quintal, sempre na mesma hora, antes do pôr do sol.

A flor Lilás olha para o homem e sorri. Agradece curvando as pétalas. A chuva vai embora. Lilás canta a canção das flores; lisiântos e  margaridas, ouvem em silêncio.O girassol responde no ritmo das frases, soltando as pétalas mais velhas.  As árvores dançam.

O homem da cada verde multiplica exemplos. Chora quando furtam-lhe os lírios e as rosas expostas no quintal. As crianças vão embora. O homem fecha a porta e fica hora a contemplar a cidade.

 No porão da casa, acaricia as páginas dos livros antigos. Seu maior sonho é saber que um dia, sua loucura será compreendida. A cidade inteira   ouvirá a sua voz.

 

Templo da Alma




Ventos da tarde transportam lembranças. Leva a poeira das calçadas, desbota a tinta das frases pichadas nos muros. Palavras pesadas soam em todos os recantos. A violência predomina nos jornais e na tv. AINDA PODEMOS GUARDAR a poesia no templo da alma.

 

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Universo particular.


Na janela do ônibus, espero novas paisagens.  Vejo o vai e vem dos aviões e automóveis.  Lá fora, a vida passa morna, as pessoas sonham sonhos miúdos. Numa parada, meninos de rua, olham-me com olhares vagos.

A noite desce, estrelas fogem, cortam nuvens. O sono e a solidão acendem desejos; brotam pensamentos confusos.

O motorista do ônibus tem a face pesada. Os óculos escuros escondem lágrimas. Depois das meia noite, voltará para casa. Ás cinco da manhã estará na garagem. Os passageiros descem silenciosos.

 Vejo outdoors eletrônicos, leio frases pichadas nos muros. Em casa, à espera do sono, faço as malas.  Viajo para países distantes; recebo o abraço da humanidade inteira. Mas sempre retorno ao meu universo particular.

sábado, 21 de março de 2015

Espelhos nos pés


O rapaz vestia-se todo de branco. Seus olhos expressavam a castidade dos jovens do século XIX. Foi educado nas boas escolas burguesas, respirava o ar de Paris e o estilo dos autores franceses. Ouvia Chopin e Bach à luz de velas. Lustrava os sapatos todas as tardes, para frequentar às festas.

Vozes em coro, exclamavam: "Esse rapaz tem espelhos nos pés".
As mulheres sentiam sua presença, bem antes de chegar. Desejavam apertá-lo e sentir  seu perfume.

As mocinhas, tremiam quando ele, timidamente, as convidava para dançar. Coladas no seu corpo, dançavam  músicas cubanas e brasileiras. Ás vezes ensaiava alguns passos de hip hop, só para fugir da pose. Os senhores mais velhos o achavam estranho.

"Existe algo de errado nesse moço". Tão boa pinta e volta para casa, sempre sozinho". - Comentavam.

Não sabiam eles, que em casa, ele tinha a companhia de gatos, cães amestrados da Dinamarca e quadros de artistas anônimos. Sempre no inverno, convidava amigos de outras regiões, para uma noite lírica.

sexta-feira, 20 de março de 2015


O Réveillon de Denise


Denise tomou um banho de sal grosso ao amanhecer. Vaidosa, ficou horas a pensar no look. Esperava parentes vindos do subúrbio. Vestiu um short de linho branco e top verde perereca. Colocou no tornozelo, uma corrente de prata e uma imagem de São Jorge. Embora amigas aconselhassem usá-la no pescoço. Assim teria mais efeito a espada do santo.

A tarde de Ipanema estava um inferno. O termômetro  marcava 34°C. Comprou para ceia, produtos da China e do Paraguai. Na feira de São Cristóvão, escolheu sandálias para o namorado Americano.

No apartamento esticou-se no sofá. Num breve cochilo, sonhou com Yemanjá de cabelos ondulados e brincos de argolas. Assustada, levantou-se para abrir as janelas. Sentia saudade das viagens pela com o namorado capitão da Marinha americana. Sonhava sempre no mar e esforçava-se para reconhecer as bandeiras dos países que visitava.

"São da África?" - Dirigia-se a tripulação com as palavras presas no dentes.
Tambores batucavam um som semelhante ao jazz. Cansada, ouvia as  no convés:

"Quero aprender dançar funk e samba nas baladas das favelas".

Os fogos de artifício despertaram lembranças da adolescência. Pensou na sua alma gêmea, o Peter Black. Denise pulou sete ondas, como se fossem a representação dos sete amores que lhe arrastaram pelo mundo. Num domingo de março, o mar devolveu as flores e os frascos de perfumes baratos. Os pés de nuvens desfilavam na areia. O rosto  estava mais leve. Os pensamentos confusos e o desejo de perdoar as cantadas do porteiro.

quarta-feira, 11 de março de 2015

A vez e a voz de Tonha


Cortou as unhas  longas e duras. Elas riscavam a pele dos moleques e abandonava-os na primeira esquina. Os cabelos enroscavam-se nas árvores. Os braços velozes separavam as pedras do tempo e o sonho no colo de amores vestidos de nuvens.

 No espelho das águas, ouvia vozes. Na floresta, sentia-se perseguida por estranhas figuras. Talvez desejassem acariciar  o rosto mergulhado em passados.

  No meio da noite, sua voz rouca, estilo  filme de terror, espantava  insetos da cabana onde  dormia.
Nos olhos tímidos, estavam salientes os desejos. Imaginava guerreiros celebrando a volta dos deuses batucando  tambores.

Antes de adormecer, Tonha  sempre repetia a mesma canção ensinada pelos ancestrais:

 "Mamãe Oxum, êêê! Ó mamãe Oxum, êêê"!

domingo, 8 de março de 2015


A mulher ideal

 
A natureza desenhou o corpo perfeito. A boca é de estrela hollywoodiana. Às vezes é rebelde, quando não consegue convencer o namorado para jantar na Rua 46. É inocente e sensual como a serpente no paraíso. Tudo parece perfeito; mesmo assim desespera-se; quebra espelhos dos hotéis onde se hospeda, atira nas janelas, caixas de maquiagem.  Acorda de salto, cílios postiços e  batom borrado.
O trânsito é vagaroso. Fica nervosa. Num outdoor lê a frase : Procura-se a mulher ideal.Esquece  o carro no estacionamento do shopping. Caminha a passos miúdos. Ouve assobios dos flanelinhas e dos  motoristas de ônibus. É indiferente a tudo. Solta os cabelos, abotoa o casaco estampado de flores.

 “Ela é louca e distraída, parece atriz dos filmes Godard” -  Gritam nos bares e no oitavo andar.

Embriaga-se na primeira esquina. Bebe rum com limão. Imagina estar num pub londrino. Tira da bolsa um livro de Simone Beauvoir.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Um poema para o mês de Outubro



Numa manhã de outubro, desejei escrever um poema em homenagem ao mês tão esperado. Não o fiz, porque ares de setembro estavam em meus dedos e cismavam recolher do chão, uma pálida flor.
Segui a passos lentos; na mão direita, um guarda-chuva transparente, esperava a chuva fina, soprada pelo vento leste.

Meus sapatos engraxados deixavam para trás a poeira de ontem. Esperavam o sol da tarde, prometido pela moça do tempo, no jornal do meio-dia.
     Ouvi na praça, uma mulher em trapos. A cidade a conhecia como Maria Louca.Seus gritos feriam ouvidos mais sensíveis:

"Tenho os olhos abertos e as mãos enormes, para colherem  estrelas vadias e cadentes".
 "Quero apagar as marcas dos beijos prometidos  e sentir o calor dos abraços parados no ar. Minha alma engole vento. Necessito de afagos para continuar jornadas".

   Quem sabe depois de amanhã teremos um  poema para guardar nas páginas de um livro? - Tenho comigo uma certeza: outubro renova os sonhos e abastece cestos de flores e frutos.

domingo, 1 de março de 2015

Cheiro de Domingo

 
 
Às vezes o domingo tem cheiro de chumbo e arroz queimado. Mesmo que tenhamos à mesa um arranjo de flores, a delícia das frutas e o aroma dos melhores vinhos.
Dana-se o domingo, quando chega ao portão, os salvadores de almas com mensagens proféticas. Todos pecam pela inconveniência. Sempre chegam antes do almoço, bem vestidos, perfumados e lustrosos. Somos obrigados a cancelar a leitura dos jornais e das revistas. Deixamos para mais tarde, as notícias; logo... estarão frias depois do meio-dia.
As tardes e as manhãs do domingo, são mais iluminadas, quando estamos em férias na praia. As diárias do hotel são pagas em parcelas, ganhamos tickets para o teatro, recebemos convites para um jantar.
Antes da meia-noite, desistimos de assistir ao filme cotado para o Oscar. Na madrugada, no apartamento, adiamos a volta à mesmice da segunda-feira.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A Moça

A boba olha-se demoradamente no espelho. Amarra as tranças do cabelo com laço de seda, atrapalha-se no meio das bonecas de pano jogadas pelos cantos da sala. Murmura palavras de língua irreconhecível, dá as costas às cenas de sexo no horário nobre da TV. Lava-se toda, cospe no chão. Antes da meia-noite, despe-se do  manto, azul de Nossa Senhora. Sobre bordados e sedas... De olhos fechados e braços abertos, espera o voo da manhã.

A morte de Klungo


O meu amor morreu à míngua. Não conhecia o mundo do lado de cá da América do Sul. Chamava-se Klungo. Veio do Congo para São Paulo no final do século XX. Distraído, olhava vitrines e edifícios; foi atropelado por uma motocicleta que passava na avenida São João.